“A vida é muito curta, e esta equação é longa demais”,

Era um dos muitos pensamentos que trafegavam incessantemente pela cabeça daquele homem de aparência grave, com um rosto enrugado pelo desânimo e por horas sem dormir. Aquele era um indivíduo peculiar, com uma rala barba branca e um óculos pequeno demais para seu rosto, e que passava horas e horas de seus dias trancafiado em uma das pequenas salas de pesquisa no departamento do Instituto Clay de Matemática, centro de pesquisa da pequena cidade americana de Cambridge, no estado de Massachusetts.

Na verdade, a análise em si não era nenhuma revelação: apesar de suas claras inclinações para levar uma vida fundamentada no estudo do cálculo analítico, o Dr. Jahred Assin – também conhecido como Assinzinho pelas senhoras amigas de sua mãe, Jahrá pelos amigos antigos ou simplesmente de Jahrewdi pelos alunos americanos idiotas que não conseguiam pronunciar seu nome (apesar das inúmeras vezes em que escrevia e ditava, soletrando, em voz alta) – já travara muitas batalhas ingratas com os números, durante os últimos dezessete anos em que passou lecionando no Instituto.

A formação acadêmica de Jahred sempre fora uma poderosa ferramenta para decifrar a complexidade dos números em sua pesquisa teórica: havia estudado os mistérios pitagóricos, combinando os dados com pesquisas sobre mecânica quântica aplicadas diretamente ao teorema de Gödel. Muitas vezes, em madrugadas produtivas e solitárias, reclinava sua poltrona e apreciava as curvas de seus algoritmos, sorrindo por ter alcançado uma compreensão maior da realidade. Para ele, suas soluções apareciam como irrefutáveis – belas e elegantes – e nestes momentos de glória o sisudo professor se permitia a ter uma ponta de orgulho pelo mérito de suas infindáveis pesquisas, chegando até a esboçar um meio sorriso quando alunos e outros pesquisadores bajulavam suas teorias nos corredores. Para quê modéstia? Elas eram, mesmo, frutos de uma mente brilhante.

Mesmo com muitas conquistas intelectuais nos últimos anos, nenhum esforço parecia ser capaz de aliviar o peso deste novo problema em particular: em sua frente, estendia-se uma sequência numérica bela e terrível, cuja solução parecia se revelar de um jeito simples, mas logo se escondia subitamente. Em uma linha, a ordem virava caos. A fórmula se exibia como uma dançarina em um bordel antigo, que atiça a imaginação da platéia com um pedaço de sua maravilhosa coxa só para, momentos depois, correr para detrás das cortinas e nunca mais ser vista. Jahred agora encarava, perplexo, o limite de sua capacidade racional. Não, aqueles números não viriam como uma presa fácil, embrulhados em uma solução messalina que dormiria com mil outros cérebros. Aquele era seu prêmio, sua Helena, seu objetivo na Terra; e a descoberta deste tesouro seria algo que certamente faria seu célebre nome ressoar pelas salas de Universidades. Mais que isto, seu nome seria escrito como referência das maiores obras, cantado em hinos e entraria na lista das preferências de nomes de bebês em maternidades de todo o mundo (pelo menos entre os filhos de físicos, a escolha ficaria entre Newtonzinho, Albertzinho e Jahredzinho).

Com o ápice dourado de sua carreira e o indubitável reconhecimento do Prêmio Nobel, ele passaria de um reles mortal para se transformar no excelentíssimo Professor Doutor Jahred Assin. Até camponeses do norte da China saberiam pronunciar corretamente o seu nome.  J-a-h-r-e-d.

Mas a descoberta não era sem custo. Foi preciso entregar tudo para esta maldita equação, que desdobrava-se infinitamente. Seu trabalho se resumia a tentar decifrar este enigma, e ao mesmo tempo esconder seu próprio avanço para bem longe dos olhares ardilosos de outros matemáticos. Este maldito pedaço de quadro-negro lhe custou longos cinco anos de estudos, centenas de horas dentro daquela maldita sala claustrofóbica, no maldito Instituto de Matemática. Tudo, tudo em busca de uma simples, esclarecedora, deslumbrante, maldita resposta.

…Maldição.

É justo dizer que a irritação de Jahred naquele fim de tarde de outono não se justificava apenas pela não-resolução de um problema matemático. A sua vida inteira – sua infância em Mumbai, seu destaque em cálculo avançado e a luta para se adaptar à vida nos Estados Unidos – todo seu esforço foi guiado cegamente por uma simples certeza: ele era especial. O pequeno homem indiano acreditava que possuía uma capacidade extraordinária, e que seu dom e sua perseverança levariam a humanidade um passo adiante.

Ele bem que poderia ter seguido o caminho mais fácil. Poderia (como fizeram três entre dez de seus amigos) virar programador de software, ou ainda (como fizeram sete entre dez de seus amigos) virar taxista em Nova York. Não, Jahred sabia que, no fundo, isto não seria suficiente. Ele tinha plena consciência de sua missão a cumprir, uma cruzada particular, que precisaria realizar isolado do mundo exterior. O resultado de seu trabalho seria a resposta que mudaria para sempre o futuro da Ciência, e que o faria ser lembrado pela eternidade como pai de uma ‘Nova Matemática’.

O cansaço crescia, a concentração ia embora. Entre as centenas de milhares de sinapses cerebrais em sua cabeça, uma vontade começou a crescer e – como uma tecla do piano batida repetidas vezes dentro da melodia de uma música – um desejo específico tomou todo o espaço de sua reflexão racional. De uma hora para outra, uma única asserção transformou-se na conseqüência lógica de todas as suas penosas horas de trabalho:

 “Preciso de mais café”, pensou, quase em voz alta, enquanto olhava para a xícara já fria sobre a mesa.

Apagou o quadro metodicamente e saiu da sala. Caminhou pelos corredores vazios e respirou fundo, observando algumas folhas secas que dançavam ao vento. Atravessou o estacionamento calculando quanto tempo levaria para sair do Instituto e ir até o Starbucks mais próximo, onde tomaria qualquer coisa açucarada. Mentalmente, estava exausto.

Entrou no carro e, antes de virar a chave, deu um longo suspiro. Geralmente asséptico em relação aos próprios sentimentos, Jahred sentia, neste momento de fraqueza,  uma brisa de vazio existencial. Não tinha mulher, não tinha amigos confiáveis. Tinha apenas colegas, alunos e números. Dedicou-se à Ciência, e ela era uma meretriz ingrata; oferecia doses esporádicas de prazer, mas nunca estava lá no dia seguinte.

Ligou o carro e o rádio estava sintonizado em uma estação de músicas antigas. Um clássico de Glenn Miller começou a tocar e, enquanto guiava, os pensamentos do professor refizeram todos os passos que tinham trilhado sua vida até aquele momento. Sem aviso, uma memória inesperada assolou suas lembranças: pensou em… Naima, seu primeiro amor.

Jahred lembrou de como ficava hipnotizado pelos seus olhos negros e profundos, pelos seus cabelos com cheiro de jasmim, que ela sempre arrumava quando sorria. Ah, o sorriso de Naima, suas covinhas, sua voz suave e timidez encantadora.

A paixão nunca deixou de ser platônica, e Assinzinho – que geralmente observava a garota à distância, sem coragem para nada mais do que um aceno com as mãos – sofreu amargamente (mas em silêncio) quando a corrente da vida afastou seu primeiro afeto verdadeiro de seu cotidiano escolar. Ela foi estudar Arte. Ele, que não era nenhum poeta, redobrou sua dedicação aos estudos de Matemática. Deveria fazer quase 30 anos que não se viam, mas, vez ou outra, a imagem dela ainda aparecia em sonhos de noite mal dormidas, o que sempre fazia Jahred acordar com uma angústia no peito. Antes, ela era uma inspiração. Hoje, ela era um vulto, uma lembrança de uma época simples, menos solitária e mais feliz.

Refez o caminho mental, perdeu-se. A trilha estendia-se pelo seu subconsciente. Observando. Números se destacavam. Uma serpente no bastão. Essa era a fonte. Uma floresta silenciosa. Abra a porta. Oco. Nulo. ω1=12(∂v3∂x2−∂v2∂x3) =12(∂∂x2v3v4−∂x3v2v4)ω0= 0. Sim… Eureka.

Perdido em delírios, o professor quase não percebera quando um caminhão atravessou a pista. Mal teve tempo de acordar com a batida seca, que fez seu corpo ser lançado para frente, trincando o vidro dianteiro. Em um milésimo de caos, estilhaço e sangue, Jahred sentiu, como se fosse em câmera lenta, seus ossos se quebrando. Não havia dor, só um pensamento desesperado: “Isso não é possível”. “Isso não pode estar…não pode…nã…”

Sobrou o vazio. A não-existência. A solução que se perdeu para sempre.

A morte é um absurdo.