Creatio Continua

Mês: julho 2013

‘Hacienda Hadley’

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“Caro Scott,

Nós estamos indo para Pamplona amanhã. Estou pescando trutas aqui.

Como você está? E como está Zelda?

Estou me sentindo melhor do que nunca – não bebi nada a não ser vinho desde quando saí de Paris. Deus, é um interior maravilhoso. Mas você odeia o interior. Então não vou falar do interior. Eu estou pensando em qual seria a sua definição de ‘Paraíso’ – um vácuo lindo repleto de monógamos ricos. Todos membros de famílias ricas e poderosas e bebendo até a morte. E o seu Inferno provavelmente é um vácuo feio repleto de pobres polígamos que são proibidos de beber álcool ou com desordens crônicas de estômago e tristezas secretas.

Para mim, o Paraíso seria uma imensa arena de tourada, onde eu sempre teria os dois melhores lugares para assistir ao espetáculo e uma lagoa repleta de trutas do lado de fora, onde para ninguém, além de mim, seria permitido pescar. Eu teria duas bonitas casas na cidade; em uma delas ficaria minha esposa e meus filhos, e eu seria monógamo e amaria os dois verdadeiramente. Na outra casa eu teria nove belas amantes, em nove andares diferentes, e a casa inteira seria recheada com cópias especiais da revista The Dial impressas em papel macio, e mantidas em banheiros espalhados por todos os andares. Na outra casa, nós usariamos para nos limpar a American Mercury e a New Republic. Então existiria uma bela igreja – como a de Pamplona – onde eu pudesse me confessar, e o lugar ficaria entre uma casa e outra, e eu chegaria até lá no meucavalo, e andaria nele com meu filho até a minha fazenda de touros chamada ‘Hacienda Hadley’ e jogaria moedas para meus filhos bastardos que vagariam pelas estradas.

Eu escreveria em paz na Hacienda, e de lá mandaria meu filho sair para colocar cintos de castidade nas minha amantes quando ficasse sabendo da notícia que um notório monôgamo chamado Fitzgerald estava chegando ali, na companhia de diversos amigos bêbados.

Estamos indo amanhã para a cidade. Me mande cartas para o Hotel Quintana/ Pamplona / Espanha.

Ou você não gosta de escrever cartas?
Eu gosto, porque esta é uma boa maneira de não trabalhar,
e mesmo assim sentir que você está escrevendo alguma coisa.

Até logo, e mande nosso amor para Zelda.

Sinceramente,

Ernest”

Carta de Ernest Hemingway para Scott Fitzgerald,

enviada no dia 1 de junho de 1925

 

Para uma Garota Bonitinha

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“Por quê você não escreve uma história de amor bonitinha?”, ela me perguntou enquanto me fitava com olhos negros como uma noite sem estrelas, me beijando no pescoço com lábios que tinham gosto de morango. “Como assim?”, pensei, em voz alta. “Não sei. Tudo o que você escreve sempre acaba mal”, ela respondeu, sorrindo.

Fugindo de qualquer coisa mais séria, eu ri de volta. Brinquei dizendo que um dia, talvez, eu escrevesse ‘a nossa história bonitinha’. Que talvez fizesse um filme de amor que acabasse com a gente velejando em direção ao pôr-do-sol no Mediterrâneo.

Dentro daquele micronésimo de segundo, eu estava completamente apaixonado, com cara de bobo. E foi difícil  de explicar que tenho um acordo comigo mesmo; não consigo fazer nada com o gosto de resto de café morno que sobrou do almoço.

E que Chronos, o Tempo, é impiedoso. Ele não perdoa os devotos de uma rotina excruciante, sem sabor, sem paixão, em aceleração constante para lugar nenhum. Não é uma questão de ter pressa e de fazer ‘tudoaomesmotempoagora’; Pelo contrário – respeitar o Tempo é respeitar os momentos em que os ponteiros parecem parar, nunca se esquecendo de guardar espaço no coração para tudo aquilo que não volta. É preservar a gratidão pelas coisas especiais que surgem no fluxo da vida.

Acho difícil de escrever uma história de amor ‘bonitinha’ porque sempre vi o “Felizes para Sempre” como sendo uma aberração do amor – mais do que isto, esta sentença de filmes de sessão da tarde parece coisa escrita para costurar os trapos de um sentimento que, há muito, perdeu o verdadeiro significado. A vida é cheia de possibilidades, e o amor é vida: ele flui, pulsa, sobrevive às condições adversas, deixa cicatrizes, sorrisos, lágrimas e, um belo dia, de uma maneira ou de outra, ele acaba.

E o fim não precisa ser terrível. Não é ponto final é que revela a beleza das grandes histórias? Não é o silêncio que se destaca dentro das melodias inesquecíveis? O último frame de um filme não é, sempre, o mais definitivo? Eu escrevo sobre aqueles cinco segundos depois que tudo acaba, que te impedem de respirar e te fazem engasgar de emoção – seja de alegria ou de tristeza. Estes segundos, para mim, são momentos que revelam uma beleza verdadeira.

Ainda não encontrei com ela depois daquela noite.

Espero que tenha sobrado algo bonito de nós dois.

3

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Dissipando névoas de um sonho que parecia tão real, Amanda abriu os olhos.

O relógio na cabeceira da cama marcava o horário: três da manhã. “Droga”, murmurou, enquanto tateava para encontrar o celular que apitava no meio do edredon. Olhou para a tela acesa. Era ele? Suspirou lentamente, saindo, pouco a pouco, da leve embriaguez do próprio sono.

Fechou e abriu os olhos. Era ele. Não atendeu; apertou o silencioso e, durante alguns segundos vazios, brincou com os dedos pela borda do aparelho. A tela parou de piscar. Ela se jogou sob as almofadas, encarando o teto e olhando de lado para a janela iluminada com a vista do centro da cidade. A vida parecia não querer dormir naquele sábado.

O celular tocou de novo, vibrando insistentemente. Ela atendeu. “Te acordei?”, a voz do outro lado da linha despertou imediatamente sentimentos ambíguos. Em um instante, a enchente de memórias fez florescer uma porção de lembranças boas, e tantas outras ruins.

Ela pensou em desligar.

Ela segurou o próprio choro.

Ela pensou em mandar ele para o inferno.

E de um caldeirão de emoções instantâneas, apenas murmurou um ‘não’.

Havia tanto, e tão pouco, para ser dito.

“Estou aqui embaixo. Queria… te ver”, a voz do outro lado da linha hesitou, como se falhasse em acreditar na própria vontade. Amanda respondeu qualquer coisa, soando mais firme do que realmente era. Sentia seu próprio coração acelerar involuntariamente, e se odiava por isto. Se flagrou mordiscando levemente o lábio inferior, como se para comprovar que estava acordada.

Com um clique, o abajur da escrivaninha preencheu as paredes do quarto com uma cor  azul. Se erguei sob si mesma, segurando o telefone e ouvindo as palavras misturadas do outro lado da linha. O sono tinha ido embora. Não importava, já não ia mais dormir. Colocou suas pantufas em formato de elefante e se olhou no espelho com aqueles lindos olhos azuis, que já há muito tempo eram despidos de inocência. Desligou o telefone e se jogou sob sua cama, ao mesmo tempo em que tirava a camisola, deixando a mostra sua tatuagem no pescoço – uma flor, tão pervertida em sua inocência; um mapa silencioso que apenas alguns de seus amantes entenderam, enquanto outros não prestaram a mínima atenção.

De alguns meses para cá, Amanda se sentia cada vez mais vazia. Era como se houvesse perdido alguma coisa importante, sem saber bem o quê. Sentia como se gritasse para dentro, e só ouvisse em retribuição um eco desagradável, ecoando os tons de uma solidão desoladora. Uma mistura de angústia e ódio crescia, cada vez mais, de dentro dela, fazendo a sombra se espalhar por tudo. Até seu sorriso, antes bonito por ser gratuito, havia se transformado em uma obrigação mecânica, em uma máscara que vestia antes do café-da-manhã para socializar com o mundo. Tudo para evitar aquela pergunta incômoda: “Está tudo bem?”. Claro que não. Nada está bem.

Não era tudo culpa dele.

Era ela.

Ela se arrastava como uma morta-viva, respirando por aparelhos, levando os longos dias em uma mistura mortal de ansiolíticos, doses de cinismo e vodca com energético. Quando chovia, ela trancava sua porta, abria as janela e sentia o vento atingir seu rosto. Olhava, silenciosamente, para o horizonte. Para além do cemitério em sua janela e da correnteza de água fria que escorria entre calhas e muralhas de concreto. Um mundo vazio. Um mundo no qual ninguém sentiria sua falta. Nessas horas, um amargor estranho se espalhava pelo céu da sua boca, mas pular era coisa de idiotas castrados, mártires do nada.

Melhor se matar aos poucos.

E isso que ela havia feito nos últimos meses. Um suicídio de prazer intercalado por momentos de tédio, traduzidos sempre por uma terrível, inexplicável, vontade de chorar.

A porta do elevador se abriu, e uma brisa do lado de fora do prédio arrepiou os pelinhos de seu braço. Amanda parou por um instante. Na escuridão, o silêncio era cortado pelas batidas eletrônicas vindas de dentro de um carro que passava na rua de baixo, acelerando. “Os melhores aparelhos de som, as piores músicas”, suspirou, fechando o portão do prédio. Lembrou de seu avô. Ele reclamava do barulho na sacada, pitando seu cigarro de palha. “Essa molecada não sabe o que é bom”. Ela amava o velho.

Viu o carro branco parado na esquina, com as luzes apagadas e uma sombra refletida pela claridade da rua. Era ele, mas  também era o passado, fugaz, escondido, preparando para saltar sobre ela como um dragão salta sobre ouro. Muitas outras vezes sim. Não dessa vez. Eu espreitava, atrás do último poste, junto com as moscas mortas presas na lâmpada de neón.

Amanda caminhou lentamente e a porta do carro se abriu pelo lado de dentro; o convite para entrar em um universo familiar, inundado pela essência de nicotina. “Oi, Rafa”, disse, com a voz meio tímida.

Ele sorriu.

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