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“De uma hora para outra, desapareceu o cinza pálido de meus dias de rotina reincidente; joguei fora o conforto da solidão crua, e tudo foi substituído, de uma só vez, pela total escuridão. A  incerteza, a loucura, tudo aquilo que não se diz. O Diabo está nos detalhes, e Deus também. Em algum lugar daquele pedaço do universo, escondido no lado de dentro. Em um sorriso mal contido no canto da boca, em um minuto que ficava perdido e quase esquecido, de uma coisa eu sabia: ela ainda me fazia feliz.”

“Todas minhas mulheres estão casadas com outros caras”, pensou o escritor, abandonando o teclado e tomando mais um gole de vinho em uma noite fria, daquelas que sempre embaçavam a janela do seu pequeno apartamento. O vento suspirava lá fora, carregando mais uma história incompleta. Acendeu um cigarro, jogou a cabeça para trás e fechou os olhos. Estava exausto; a página em branco era impiedosa.

Queria ser um romântico, mas o que sabia sobre o amor? “Porra nenhuma”, reclamava por dentro, sentindo que nunca havia amado ninguém a não ser a si mesmo. Mas sabia que isto também era uma mentira. Sabia muito bem o que corroía seus próprios pensamentos em madrugadas insones, o que o assombrava enquanto se revirava na cama de solteiro de seu pequeno e abafado apartamento.

E, de vez em quando, ainda sonhava com um desfecho diferente para a realidade. “Nas  minhas linhas, todos os caminhos voltam para você”, falava para uma mulher desconhecida – um rosto apagado pelo tempo e pelo álcool. Sem distinguir exatamente quem era, ele se reconhecia no irreconhecível, porque o sentimento estava lá. Ela estava nua, e o escritor se afogava até a morte, buscando redenção naqueles seios de bico rosa e na sua pele branca e macia. “Porque você foi embora?”, ela repetia para ele, sempre muito ocupado para responder. Sempre tentando aproveitar um segundo antes que…

E, então, acordava, excitado e decepcionado com a própria ilusão. Caminhava até a escrivaninha e rabiscava mais um conto de linhas soltas, tentando seguir os conselhos de Hemingway, sangrando nas páginas. Mas há tempos não se apaixonava. Nunca havia assistido algo morrer. Nunca havia vencido a própria solidão. Olhava para a folha de papel e ela surgia como um espelho da sua alma medíocre, que sempre estava cheia de palavras imprestáveis, falsas, racionais demais, innacrochable.

Era mais do que odiar a si mesmo: ele odiava o seu tempo. Odiava no que o mundo havia se transformado e, quando não estava bebendo, fumando e se distraindo da própria angústia, se refugiava nas páginas de livros antigos, escritos por pessoas mais velhas e mais sábias, remanescentes de uma época onde ainda existiam coisas para serem ditas. Um lugar que não se resumia à amizades virtuais, 140 caracteres, conveniências 24 horas, fotos de cachorrinhos e pornografia. Mentiras. Aqui ninguém tem amigos, interesses, inteligência ou tesão.

É pior do que o fim do mundo. É o nada.

“Não avisei que íamos chegar nisto?”, os deuses pareciam gargalhar através dos trovões que cobriam a cidade, como se estivessem cuspindo na cara da humanidade pelo fracasso que ela se tornou. “Chega dessa merda”. O escritor levantou da velha cadeira, resolvendo sair na rua para uma caminhada. Se chovesse, melhor.

Mas não chovia. Só havia o frio cortante, e a rua mal iluminada revelava até uma certa beleza poética. Eu estava ali, sentado na escada, com o rosto coberto por um capuz e um sorriso de dentes podres. O escritor passou por mim erguendo a gola de seu casaco, caminhando em direção aos bares da próxima esquina e passando onde um grupo de pessoas sem importância conversavam, tragando seus cigarros e fingindo serem felizes.

Do lado de dentro de um dos bares vazios. Percebendo a chegada de mais um clente, a garçonete – uma loira de peitos grandes, batom vermelho e com o corpo marcado por tatuagens – tentou desviar seus pensamentos do encontro sexual que teria mais tarde.

“O que vai querer?”, perguntou, automaticamente, ao cara que sentava no balcão. Ela já tinha visto ele por ali, mas não era um cliente regular. “Uísque”, respondeu o escritor. “Jack and Coke”. Ele pensou em como o sabor fazia ele se lembrar de tempos melhores, cheios de possibilidades, onde um lance de dados podia mudar qualquer situação.

Mas a sorte havia escapado no primeiro raio de sol daquele quarto de hotel em Vegas, levando sua carteira e sem deixar bilhete ou telefone de contato. “Bons tempos”, pensou, quase em voz alta. A garçonete de olhos mortos encheu o copo sem prestar atenção, ao mesmo tempo que atendia o celular.

Faziam quatro anos que morava em um pequeno apartamento na parte baixa de Manhattan, onde desperdiçava sua energia escrevendo artigos publicitários e pagando um aluguel grande demais para morar em um apartamento do tamanho – e com o mesmo público – de uma ratoeira. Não estava particularmente triste, mas há tempos não experimentava qualquer dose de felicidade menos passageira que um bom gole de uísque.

O escritor tateou a calça em busca de seu maço de cigarros. Ainda haviam três, mas sabia que não podia acender nenhum ali. “Lei de merda”, pensou. Não era um fumante inveterado, enxergava o maço mais como um extintor dentro de um vidro de emergência, que durava meses em seus bolsos. Naquela noite, sentia necessidade do sabor amargo da nicotina. Naquela noite, tinha saudade dos bares enfumaçados e fedorentos; daqueles que pareciam repletos de gente mais interessante, e não precisavam ser limpos como um maldito McDonald’s.

“Oi, você pode me dar um?”, foi interrompido em seu pensamento por uma  garota ruiva, que tinha se levantado de uma mesa onde estava com outros três caras. Ela observou ele, mexendo em sua caixinha de Marlboro. “Lá fora está frio, mas aqui dentro não tem ninguém”, ela completou, sorrindo, meio sem saber o que queria dizer com aquilo.

Ela tinha olhos claros e sardas no nariz, com cabelos cacheados que caíam pelos ombros. O escritor sorriu. “É noite de quarta-feira. Só vagabundos ficam perdidos por aqui”, falou, meio sem jeito. Ela deu uma risadinha, olhando para o lado, com vergonha; percebeu como ela era incompreensivelmente bonita. A garota na sua frente era dona de uma beleza incomum, disfarçada pela jaqueta de couro gasta, camisa do Ramones e All-Star vermelho. “Vamos lá fora, também preciso de companhia”, disse, deixando o dinheiro do uísque e a gorjeta no balcão.

Lá fora, a rua estava iluminada apenas pela luz branca da farmácia da esquina, refletida nas poças d’água. Parece que havia, enfim, chovido. “O que você faz, além de ser um vagabundo?”, a garota perguntou, enquanto acendia o cigarro. “Eu escrevo”, respondeu, com um meio sorriso. Ela olhou para ele, soltando fumaça. A ruiva era ainda mais bonita com um cigarro na mão.

Escreve sobre o quê? – ela perguntou, enquanto apoiava o cotovelo no próprio braço, se debruçando sobre a parede do bar. “Eu ganho dinheiro com biscoitinhos chineses”, brincou, com um sorriso. “Mas estou pensando em um livro”, completou, orgulhoso pela piada e se sentindo mal ao mesmo tempo: o tão planejado livro ainda não tinha nenhuma linha.

Ela riu quase de maneira irresistível, e ele sentiu um calafrio estranho percorrer as vértebras. Era o homem mais imbecil do mundo e estava, subitamente, feliz. “Sua sorte de hoje é: você vai conhecer um vagabundo interessante”, os dois sorriram. Uma viatura da polícia passou devagar pela rua, piscando a sirene sem alarme. Um gato cinza esticou seu corpo sob o pé da escada da farmácia na esquina, antes de continuar sua caça noturna. O vento soprou e as folhas crepitaram uma sinfonia arrepiante em algum lugar da Washington Square.

Segundos ficaram  suspensos no ar.

“Me conta. Que tipo de história você quer escrever?” – ela continuou, quebrando o momento que passou à deriva. Ele titubeou. “É sobre um cara que não sabe o que quer”, disse, se surpreendendo com a própria resposta. “Ele está perdido em um mundo em que nada é… certo. Em que o tempo corre para trás, onde tudo é incompleto”, o escritor suspirou, percebendo o fio da própria narrativa se dissipando novamente, em frente aos seus olhos. Não tinha mais nada para falar. “Acho que seu personagem precisa de uma garota”, ela riu sem jeito, covinhas à mostra, deixando o cigarro para apagar na calçada. Ela estava certa. Mais do que isto: ela era certa.

Um momento, os dedos se encontraram, e o idiota que nunca havia escrito uma palavra que preste deu um passo para frente, totalmente inebriado pela essência do perfume naqueles cabelos ruivos encaracolados, em queda livre como as fontes de uma cachoeira. O escritor finalmente encarou o desconhecido; como um viajante que está muito longe de casa, e que não tem certeza se um dia vai encontrar o caminho de volta. Por um instante ínfimo, os sinos da eternidade ressoaram por ali, naquela garota cheia de covinhas, envolta em silêncio.

Um dos amigos dela chegou, dizendo que estavam todos indo para outro lugar. Ela disse “gostei de te conhecer” e virou as costas para desaparecer na próxima esquina. Mas o mundo havia mudado de padrão. Ele sabia. Eu sei: Não existe nenhum homem velho entre todos vocês. Todos crianças no oceano, sem boinhas salva-vidas.

“Eu luto com fantasmas,
Em cada beijo molhado, 
Em lábios que não são seus, nem meus.
E assim, juntos, perderemos / mais do que uma vida inteira
Além do precipício e da beira. Em qualquer canto de lugar nenhum.
Existe um oásis / Impossível de alcançar. /
Na escuridão onde estrelas brilham, mas elas já estão mortas./
Não estamos chegando ao fim. Somos parte dele.
Estamos em pedaços, sem qualquer amor no mundo. Ele é impossível. Mas ele existe.”

Carregando seu lápis invisível, o escritor acendeu seu último cigarro e caminhou, sorrindo, pelas vielas sujas e úmidas.