A meia luz do pequeno quarto dela me revelava um cenário familiar e atraente. Deitada na cama, semi nua e coberta apenas com um fino lençol de seda, a visão de seu corpo era espetacular. Ela se espreguiçava, lentamente, com cabelos quase loiros espalhados pelos ombros.

Abriu os olhos, devagar. Aqueles olhos, por vezes cinzas e por vezes cor de mel. Olhos que já quebraram tantos corações, inclusive o meu. Mas não se atente aos lamentos deste pobre narrador – ele agora é apenas uma brisa, um fantasma que se pendura no ventilador deste pequeno quarto, dentro de um pequeno apartamento, localizado nos Alpes suiços e no sul da Espanha ou, quem sabe…aqui?

É uma estranha sensação sentir-se onipresente. Eu ouvia os suspiros daquela garota desconhecida, examinava cada centímetro de seu corpo, sentia os pequenos cabelos da sua nuca arrepiarem, em ritmo lento, dançando como em uma valsa improvisada. Com um pouco mais de esforço, eu era capaz de ouvir até os seus pensamentos sussurados, distantes – com cada suspiro, ela tragava toda minha alma. As batidas do seu peito fariam Rachmaninoff se curvar humildemente, desistir de tocar o piano e acabar sua vida como vendedor de shashlik em alguma estação de trem em Moscou.

Em um momento como este é que somos levados a perceber o quanto os nossos sentidos, toda nossa ínfima racionalidade – e, ademais, tudo aquilo que assumimos como constituinte de nossa essência – são apenas as grades de uma jaula imunda que chamamos de vida. A realidade é que todo o gênero humano não passa de uma gota perdida em um oceano infinito; cada explosão cósmica é uma espécie de furacão passageiro, que surge dentro de uma mesma corrente de ar; tudo o que conhecemos são apenas notas dissonantes tocadas dentro de uma sinfonia silenciosa, eterna, etérea

Mas…aquele olhar…. ele… ele era a única coisa que me fazia sentir algo. Como uma lâmina retorcendo dentro de entranhas invisíveis, a força daqueles olhos puxavam o meu ser de volta para um resquício animal, selvagem, efêmero e impotente. Eu amava aquela mulher.

Isabella espreguiçou-se esticando as pernas, devagar, e suas mãos permaneciam pousadas como plumas brancas sobre os seus lindos seios que, belos e perfeitos, eram justificativas ideais para qualquer ato desmedido, epopéia continental ou guerra sangrenta. O seu cheiro era inebriante como a própria síntese da primavera, e seus doces lábios exalavam um elixir inesquecível – os religiosos que fiquem explorando, em vão, inúteis livros empoeirados, vivendo e morrendo trancafiados dentro de túmulos arquitetônicos – o verdadeiro templo e a verdadeira Deusa estavam ali, bocejando graciosamente, espalhados por entre os lençois macios daquela fatídica manhã.

Bella, imortalizada em seus vinte e poucos anos, levantou-se e abriu as cortinas, esperando ver entrar a claridade do dia que raiava ao longe. Mas não foi isso que ela viu.

Poseídon afogou Ulisses.

Minotauro dilacerou os ossos de Teseu

O abismo olhou de volta.

“É o fim”, ela pensou, preocupada.

É o fim.