Texto publicado no blog inCast na coluna de novembro/2015

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Faz algum tempo que afirmo que os melhores roteiristas da atualidade preferem trabalhar para séries de TV do que para o Cinema; isso acontece, em parte, por causa da criação do papel de Showrunner nas emissoras (geralmente o escritor que é o ‘dono’ da ideia é que monta sua própria equipe para desenvolver e produzir um seriado, com bastante liberdade criativa). Um livro fundamental para entender o movimento intitulado de Era de Ouro da TV Americana é o Homens Difíceis, escrito pelo jornalista Brett Martin e que revela os bastidores de produções marcantes como Familia Soprano (HBO 1999/2007), The Wire (HBO 2002/2008), Breaking Bad (AMC 2008/2013) e Mad Men (AMC 2007/2015). Hoje as séries e canais VOD, como Netflix e Hulu, são onde estão a verdadeira experimentação cinematográfica e conteúdo adulto – isso é confirmado pela migração de grandes nomes como Scorsese, Spielberg e Woody Allen para essa nova maneira de storytelling. O fato é que a maioria do que é hoje produzido e distribuído em grande escala para o Cinema tem, infelizmente, o valor artístico de uma montanha-russa da Disney. Na primeira (e última) vez que entrei em uma sessão 4XD, saí molhado com esguichos de água e tonto pelo movimento da cadeira vibratória. O filme é o que menos importa.

Não tenho intenção de me aprofundar no assunto da indústria do Cinema ou no papel dos Showrunners – quem sabe em um próximo post. Comecei a escrever um pouco distraído, ouvindo Chet Baker e pensando em Mad Men; uma das séries que tem ‘permanecido’ comigo depois do fim. Volta e meia me surpreendo pensando em seus cenários enfumaçados e diálogos temperados com existencialismo. Estive recentemente em Nova York e caminhei sob os passos fictícios de Don Draper, e mais de uma vez fiquei em um balcão tomando um Old Fashion pensando no final da terceira temporada da série – que encerra com a pergunta de uma loira exuberante para um protagonista desiludido com o amor: “Você está sozinho?”.

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O pintor nova-iorquino Edward Hopper dizia que se ele pudesse expressar o que sentia em palavras, não existiriam motivos para pintar. O que transforma Mad Men em uma série especialmente boa é exatamente o que não é dito, o que fica implícito dentro da orgia americana de consumo, álcool e drogas. O criador da série Matthew Weiner escreve pelas entrelinhas mais do que uma história sobre a publicidade e a revolução cultural; Don Draper personifica a solidão esmagadora do homem moderno, a individualidade sepulcral das grandes metrópoles, o amor inventado para vender lingeries e a busca da felicidade como artifício para consumir Coca-Cola. É de um cinismo brilhante.

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Hemingway costumava dizer que para escrever um bom romance era preciso pensar nele como a ponta de um iceberg. Apenas o autor saberia o que está escondido nas profundezas de cada personagem, mas era absolutamente necessário que tudo estivesse lá. Uma boa história deve ser mais real do que a própria realidade. Uma das coisas que mais fascinam em Mad Men é a quantidade de camadas submersas em sua narrativa. Em um capítulo da primeira temporada Draper cita La Notte, obra-prima de Michelangelo Antonioni, como um de seus filmes favoritos – não por acaso, no mesmo episódio em que ele escapa com uma de suas amantes para uma casa de praia. Os nomes dos episódios e os enquadramentos de câmera também indicam o arcabouço referencial sobre o qual a série se sustenta; A Tale of Two Cities – romance de Charles Dickens que também é nome de um dos episódios – tem passagens brilhantes sobre a solidão humana em grandes metrópoles, e as pinturas de Edward Hopper certamente serviram como inspiração para a montagem dos takes durante a série (recortei parte do texto e fiz uma montagem para exemplificar o que estou falando. As referências estão abaixo).  

Enfim, uma grande narrativa possui infinitas camadas. O sabor inebriante de Mad Men vai permanecer comigo por mais algum tempo, reaparecendo periodicamente em um jazz dos anos 50 ou entre uma dose e outra de uísque misturado com laranja e angostura.

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Trecho de ‘A Tale of Two Cities’, de Charles Dickens. 

“Um fato extraordinário a merecer reflexão é o de que cada ser humano se constitui num profundo e indecifrável enigma para todos os demais. Sempre que entro numa grande cidade à noite, considero com solene gravidade que todas aquelas casas fechadas e escuras encerram seu próprio segredo, que cada aposento em cada uma delas oculta um mistério, que cada coração pulsando nessas centenas de milhares de peitos esconde algum segredo para o coração que está ao seu lado!

Alguma coisa de horror, até mesmo da Morte, tem a ver com esse fato. Não mais posso virar as folhas daquele querido livro que amei e em vão pretendi ler. Não mais posso contemplar as profundezas dessas águas insondáveis nas quais, à luz fugaz dos relâmpagos, vislumbrava tesouros enterrados e outras preciosidades submersas.

Meu amigo está morto, meu vizinho está morto, meu amor, a eleita de minha alma, está morta; e essa é a inexorável consolidação e perpetuação do segredo que sempre existiu nessa individualidade, e que eu próprio também carregarei comigo até o fim da minha vida. Dormirá, nos cemitérios desta cidade por onde agora passo, alguém mais inescrutável do que é para mim qualquer de seus habitantes vivos e ativos, ou do que sou eu próprio para eles


Montagem dos takes finais de Mad Men

Obras de Edward Hopper
Automat (1929) / Nighthawks (1942) / Office in a Small City (1953)