Artigo publicado em 15/04/1968. Parte da coletânea “O óbvio Ululante”, de Nelson Rodrigues.

Anteontem, falei dos idiotas. Sinto, porém, que disse muito pouco, quase nada. O assunto foi apenas insinuado, e repito: — o assunto está diante de nós como uma sibéria imensa, à espera de que outros a invadam, e a ocupem, e a fertilizem. E quem não percebeu a invasão dos idiotas não entenderá, jamais, o Brasil dos nossos dias.

Sei que em todo o mundo é assim. Mas, deixemos o mundo. Tratemos do Brasil. Dizia eu, na minha confissão de anteontem, que Magé me fascina mais do que o Vietnã. E, portanto, vou-me limitar aos idiotas da casa (o Paulo de Castro que cuide dos internacionais).

Outro dia, morreu Assis Chateaubriand. Disse “outro dia” e preciso fazer uma correção de tempo. Em verdade, morrera antes, muito antes de ser enterrado. Aquele homem chumbado à cadeira, entrevado, de riso torto, não era o Chateaubriand, era o anti-Chateaubriand, a negação do Chateaubriand. Mas, a sua queda ocorreu no momento exato.

Passara a época do “grande jornalista”. Sim, o “grande jornalista” teria de vagar, por entre as mesas, cadeiras e estagiárias das redações, como uma lívida figura sem função e sem destino.

Portanto, quem matou Chateaubriand não foi a trombose, mas a inatualidade. Pouco antes, morrera J.E. de Macedo Soares. Outro “grande jornalista”. Eu me lembro do que dizia Gilberto Freyre: – “Como escreve bem! Como escreve bem!” E, por isso mesmo, porque escrevia bem, tornara-se mais secundário, mais irrelevante, em nossa imprensa moderna, do que uma estagiária.

Quando morreu, teve nos jornais uma meia dúzia de linhas. Pompeu de Sousa, Danton Jobim e mais três ou quatro acompanharam o seu enterro. O “senador” era um estilista e, como tal, tornara-se mais antigo do que o fraque de Pinheiro Machado.

Penso no meu pai. Um artigo de Mário Rodrigues era lido, em voz alta, nos botecos mais analfabetos. E a pura delícia auditiva de sua prosa aumentava a tiragem do jornal em trinta mil exemplares ou mais. Era a época em que uma boa frase derrubava um Ministério. As instituições tremiam com uma penada do “grande jornalista”.

Ainda outro dia, um velho profissional chamou-me, a um canto. Simplesmente, queria sussurrar-me este conselho de uma sabedoria infinita: – “Não escreva bem, nunca, em hipótese nenhuma.” Ao dizer isso, arquejava de uma bronquite velha, nostálgica, de passadas gerações. E, de fato, o que importa, no momento, é ser idiota.

Nas minhas notas de anteontem, escrevi que o idiota sempre se comportara como idiota. Era de uma modéstia exemplar, de uma humildade total. Não em nossa época. De repente, em nossa época, o idiota explode.

Na minha infância, não passava do curso primário e já se dava por muito satisfeito. Nascia, crescia, namorava e morria sem jamais pensar por conta própria. Podiam pichar-lhe o túmulo com a seguinte inscrição: “Nunca pensou”.

O idiota era quase um santo.

O trágico da nossa época ou, melhor dizendo, do Brasil atual, é que o idiota mudou até fisicamente. Não faz apenas o curso primário, como no passado.

Estuda, forma-se, lê, sabe. Põe os melhores ternos, as melhores gravatas, os sapatos mais impecáveis. Nas recepções do Itamaraty, as casacas vestem os idiotas. E mais: – eles têm as melhores mulheres e usam mais condecorações do que um arquiduque austríaco.

Não sei se me entendem e se concordam comigo. Mas, é o próprio óbvio. A olho nu, qualquer um percebe a ascensão social, econômica, cultural, política do idiota.

Outro dia, passou por mim um automóvel das “Mil e uma noites”. Sim, um desses Mercedes irreais, com cascata artificial e filhote de jacaré. Lá dentro, ia um idiota flamejante.

Desde Noé e antes de Noé, jamais um idiota ousaria ser estadista. É verdade que, na velha Roma, um cavalo foi senador. Mas, o cavalo é um nobre animal, de maravilhoso frêmito nas ventas. E nunca se viu um idiota relinchar.

Pois bem.

Hoje, tudo é possível, tudo.

Há idiotas liderando povos, fazendo História e fazendo Lendas. Mao Tsé-tung seria impossível em outra época. Em nosso tempo, passa por ser um estadista gigantesco. Há rapazes, aqui, que se dizem da “linha chinesa”. Embora a distância geográfica que os separa, jovens brasileiros estão por conta de Mao Tsé-tung.

E, assim, lidos, viajados, falando vários idiomas, maridos das melhores mulheres – os nossos idiotas têm também os melhores cargos e exercem as funções mais transcendentes. Eu disse que estão por toda a parte: – na política como nas letras, nas finanças como no cinema, no Teatro como na pintura.

Outrora, os melhores pensavam pelos idiotas; hoje, os idiotas pensam pelos melhores. Criou-se uma situação realmente trágica: – ou o sujeito se submete ao idiota ou o idiota o extermina.

Dirão que exagero. Absolutamente. E é tão importante ser idiota, Tão decisivo, que já desponta a fauna, sem precedentes, dos “falsos cretinos”. São rapazes inteligentíssimos, bem-dotadíssimos, alguns beirando a genialidade.

Pois bem. O sujeito, para viver, ou sobreviver, enterra o próprio espírito, como as joias de Raskolnikov. E, se for preciso, ele finge debilidade mental e põe-se a babar na gravata, copiosamente.

Eu citaria o exemplo do Ferreira Gullar.

Ex-poeta maravilhoso. Seu livro “A luta corporal” ficou, se me permitem a ênfase, como um momento de eternidade.

Mas, o Ferreira Gullar foi cercado, envolvido, triturado pelos idiotas. E, hoje, só consente em ter espírito, à meia-noite, num terreno baldio, sob a luz de fúnebres lampiões.