*parte da dissertação La Dolce Vita – O Homem Moderno em busca da Alma (2018)
Nuvens negras surgiam no horizonte daquele fim de tarde, e eu conseguia ouvir apenas o som de meus próprios passos sob as pedras que serviam de asfalto na entrada do porto de Rimini – local na cidade que marca o fim de suas praias de areia branca. Segui pelo imenso cais de madeira até chegar na borda do Mar Adriático.
Suas ondas eram suaves; o oceano parecia respirar como um cão adormecido.
Algumas partes da Rimini moderna quase não tem o mesmo sabor que Fellini conheceu quando era criança. A partir do meio dos anos 70, a pequena vila de pescadores foi se transformando, gradualmente, em uma cidade de luzes, luxo e barulho; em temporadas de verão, o local é invadido por milhares de turistas que são principalmente da alta classe italiana, empresários a artistas do Leste Europeu e da Romênia.
Uma chuva fina começou a cair e tive que guardar minha câmera, erguer meu sobretudo e dar meia-volta. Ao longe, um pescador solitário começou a recolher seu equipamento. Na borda do cais, uma lona foi arrancada pelo vento de uma das atrações do circo local, revelando a enorme cabeça de um palhaço e parte de um carrossel. A lona parecia dançar por entre as sorveterias e barracas de doces, todas fechadas durante o inverno. Agradeci silenciosamente por estar ali.
Era minha segunda vez na Itália e a primeira em Rimini, e eu acabava de entrar na terceira semana de viagem. Após passar por mais de uma dúzia de vilas italianas, finalmente chegava na cidade de Fellini. Me hospedei em um hotel vazio, ao lado da estação de trem. O dono me entregou a chave do quarto e da porta principal do prédio. “Não tem mais ninguém aqui, se chegar depois das dez pode abrir o hotel e deixar a chave no balcão”.
Parecia o começo de um filme. Talvez fosse. Entrei no quarto só para deixar a mala, peguei a mochila com a câmera e o passaporte e sai com o espírito de peregrinação. Tinha o dia todo por ali, e Rimini não é grande. Não quis pegar o mapa no lobby de entrada.
Já estava frio no começo da tarde quando sai para caminhar em um pequeno bosque de frente para o hotel. Dois senhores de boina caminhavam e conversavam. Um deles estava com um galho nas mãos, como se fosse uma bengala. Andei por três quarteirões em direção à praia e, de repente, lá estava ele, como se tivesse surgido de minha própria imaginação: a silhueta do Grand Hotel de Rimini lembra a de um palácio à beira-mar, com o letreiro em formato clássico ainda guardando algo de imponente, de misterioso. Não é difícil entender por que o jovem Federico observava o local, fascinado. Em frente ao hotel a piazza Federico Fellini presta homenagem póstuma ao célebre diretor, representada pela escultura de uma câmera fotográfica.
Os portões de metal estavam abertos e caminhei até a entrada, onde um imenso jardim terminava em frente a uma fonte com carruagens, anjos e figuras mitológicas. O imponente hotel, sem ninguém a vista, tinha um ar que parecia melancólico. Seu jardim de verão e sua piscina estavam iluminados apenas pela luz amarela de seus postes internos. Não pude evitar de pensar na cena da dança onde Anita Ekberg é erguida acima dos ombros de uma multidão ensandecida pela música. Quase conseguia enxergar a cena da maneira que ela tomou forma na cabeça do jovem Fellini. O Grand Hotel, abandonado pela falta de hóspedes, parecia um set vazio.
A chuva começava a aumentar de intensidade e ressoava no casco dos veleiros e barcos do porto. Entrei em um pequeno bistrô e pedi um ristretto para ver se ajudava a me aquecer. Olhei pela vitrine esperando as gotas diminuirem. Não tinha pressa. Pela janela consegui ver algumas pessoas cruzando a milenar ponte de Tibério com guarda-chuvas e fantasias.
Em cada uma dessas cidadezinhas em que parei, por entre goles de vinho e capuccinos, me pegava às vezes observando os arredores, ouvindo conversas de outras mesas e sentindo, pouco a pouco, aquele ambiente se transformar em uma sala de estar dentro da minha própria casa. Os olhares de cineastas como Rosselini, Antonioni, Visconti, e, é claro, do próprio Fellini, ainda se manifestavam naquelas ruas estreitas, nas ruínas de antigos impérios e no sorriso tímido da garçonete do bistrô, com cabelos encaracolados e semblante concentrado em alguma página de palavras-cruzadas. Ali estava toda a Itália, mais real que a realidade; mais surreal do que a imaginação.
Era começo de noite quando atravessei para o outro lado da ponte de Tibério. As pedras úmidas refletiam as luzes da cidade. Um barulho podia ser ouvido ao longe, em um lugar onde focos de luz azul riscavam o céu. Era terça de Carnaval e duas crianças vestidas de bruxos jogavam confetes para cima. Caminhei até a Piazza central de Rimini. Lá, uma pequena multidão acompanhava as atrações previstas durante todo o dia. Um homem em perna de pau animava o público infantil, um mágico fazia truques e os jovens da cidade bebiam nos restaurantes. Fui até o balcão de um desses bares e pedi um spritz.
Quando a noite tomou conta do local, começou a música eletrônica do DJ e – perto da meia-noite – a praça e o salão de festas da cidade estava completamente lotado. Quase era possível encontrar caminhando por ali os fantasmas de Moraldo, Alberto e Fausto, personagens de I Vitelloni (1954). O carnaval ainda era o evento do ano na pequena cidade onde todos pareciam ser parentes, amigos, vizinhos, amantes; mesmo depois de meio século, o espírito provinciano recriado por Fellini permanecia, de certa forma, intacto.
Ainda sentia o amargor de algumas doses de spritz quando decidi seguir em direção ao hotel durante a madrugada. A festa ficava mais distante a cada passo, e o barulho das caixas de som diminuíram até sobrar apenas o som da correnteza nas águas do Marecchia. O cansaço era reconfortante. Sabia que estar ali, logo naquele dia, era um daqueles momentos da vida que não são facilmente repetidos; daqueles que entrelaçam a realidade com a ficção. Meu trem iria sair de Rimini na manhã do dia seguinte. Girei a chave do hotel com cuidado para não acordar o dono. Tranquei a porta e deixei a chave em cima do balcão, subindo as escadas em direção ao quarto. Abri as janelas deixando entrar o sopro morno da maresia do Adriático.
As sombras das árvores do pequeno bosque em frente ao hotel pareciam se mover ao som de alguma melodia silenciosa, lembrando fantoches em frente à claridade das fogueiras. Um dia eu havia assistido um teatro chinês que dançava ao ritmo dessas árvores. O vento soprava querendo sussurrar algo. As folhas no chão estavam secas, e quando passei por um ponto de ônibus, me senti observado por figuras estranhas. Prestei atenção em um velho com a pele maltratada pelo tempo que me olhava de forma ameaçadora. “Cosa stai facendo qui?”, me perguntou, em italiano. Apressei o passo e percebi que ele e outras duas sombras ainda olhavam para mim quando cruzei a esquina. A próxima rua estava vazia. As casas estavam com luzes apagadas e uma silhueta caminhava lentamente, como se estivesse mancando. Eu queria saber como encontrar meu hotel.
Me aproximei e vi que a sombra era a de um homem corpulento, de capa e chapéu preto. Eu tentava chamar a atenção, mas não conseguia ouvir minha própria voz. A figura caminhava com certa dificuldade e olhava para mim de tempo em tempo, silenciosamente. O homem era Fellini, agora eu tinha certeza. Ele caminhou para fora da rua residencial, em direção à uma praça com um portal de entrada feito de pedras milenares. O vento começou a soprar com mais intensidade e o chacoalhar das árvores ressoava como uma sinfonia de grilos. A silhueta de Fellini seguiu por entre folhas que dançavam. Ele olhava para trás, como se me convidasse para seguí-lo.
Eu o segui.