Tenho a sensação de que a vida é um filme.
Talvez este tipo de coisa aconteça apenas para quem é apaixonado pelo cinema, e só posso falar por experiência própria. Quando paro e penso sobre mim mesmo, vejo que o caminho que eu sigo muitas vezes insiste em tomar uma forma indefinida, inconstante. Uma quimera fantasiosa que altera seu humor entre comédia e drama, confundindo o real com a imaginação.
Consigo perceber isto, principalmente, nas noites que passo em claro, enquanto me viro de um lado para o outro de olhos fechados, babando no travesseiro. Nessa hora exploro um universo particular, que fica escondido entre rolos empoeirados de celulóide, sinfonias estranhas e memórias infinitas. Lembro que Fellini disse: “Mentir é respirar”, e entendo perfeitamente; quando mergulhamos em nossa consciência, inundadas por tantas outras vidas, é difícil salvar a própria pele.
Na última vez, quando desisti de contar carneirinhos, meu pensamento viajou de volta para um beco mal iluminado de Roma. Era fim de tarde e chovia torrencialmente, estava frio e eu estava ensopado, sozinho, com o guarda-chuvas quebrado e completamente sem dinheiro.
Mea culpa, não consegui evitar em gastar tudo o que eu tinha em vinho, mas não estava arrependido; tinha a sensação morna em meu estômago, já havia passado pelo Panteão e sabia que, mesmo sem nenhum tostão furado, os deuses estavam comigo.
Caminhava encharcado e feliz porque naquela tarde havia realizado um dos meus maiores sonhos; peguei um metrô até o lado de fora da cidade e consegui entrar (abusando do italiano macarrônico e da minha carteira de imprensa internacional) nos estúdios da Cinecittà – um dos terrenos sagrados do cinema, onde foram rodados filmes de Scorsese, Sergio Leone e muitos do Fellini (“La Dolce Vita”, “Il Vitelloni”, “La Strada” e “Amarcord”, entre outros). Lá também foi rodada a série “Roma”, e eu até gritei um “thirteen” no meio da arena – oportunidade única e irresistível.
Mas o momento que mais me impressionou no passeio – e que martelou minha cabeça até a hora daquela tempestade – foi dentro da sala de exibição do Cinecittà, onde um telão mostrava algumas cenas inéditas e trechos de entrevistas com cineastas que trabalharam por ali. Até hoje não me lembro com certeza se era Antonioni, Rosselini, Bertolucci ou o próprio Fellini que aparece contando uma história. A história é que não sai da minha cabeça:
“Eu lembro de chegar aqui nos estúdios, quando era um moleque, e olhava para tudo isto como se não significasse nada. Corria para lá e para cá, só carregava equipamentos. Então, um dia, aconteceu. Eu percebi que não conseguiria nunca mais ficar longe disso. Eu olhava para o céu e orava e pensava com toda força de minha alma: se não for para fazer Cinema, eu prefiro… morrer”
Eu senti uma felicidade verdadeira assistindo aquilo, como se a entrevista tivesse sido produzida especialmente para mim. Esse é o espírito. Quem não está ocupado nascendo, está ocupado morrendo.
O filme acabou e as luzes se acenderam, na saída olhei por um longo tempo os cartazes preto e branco espalhados pelo corredor, e enviei para uma garota de outro continente uma estúpida mensagem de amor, que nunca foi correspondida. Não importa. Ali encontrei o que procurava, meio sem querer.
E juro ter ouvido uma música de sobe créditos.
Em noites escuras e insones, esse tipo de lembrança é que me faz sorrir.