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Dissipando névoas de um sonho que parecia tão real, Amanda abriu os olhos.

O relógio na cabeceira da cama marcava o horário: três da manhã. “Droga”, murmurou, enquanto tateava para encontrar o celular que apitava no meio do edredon. Olhou para a tela acesa. Era ele? Suspirou lentamente, saindo, pouco a pouco, da leve embriaguez do próprio sono.

Fechou e abriu os olhos. Era ele. Não atendeu; apertou o silencioso e, durante alguns segundos vazios, brincou com os dedos pela borda do aparelho. A tela parou de piscar. Ela se jogou sob as almofadas, encarando o teto e olhando de lado para a janela iluminada com a vista do centro da cidade. A vida parecia não querer dormir naquele sábado.

O celular tocou de novo, vibrando insistentemente. Ela atendeu. “Te acordei?”, a voz do outro lado da linha despertou imediatamente sentimentos ambíguos. Em um instante, a enchente de memórias fez florescer uma porção de lembranças boas, e tantas outras ruins.

Ela pensou em desligar.

Ela segurou o próprio choro.

Ela pensou em mandar ele para o inferno.

E de um caldeirão de emoções instantâneas, apenas murmurou um ‘não’.

Havia tanto, e tão pouco, para ser dito.

“Estou aqui embaixo. Queria… te ver”, a voz do outro lado da linha hesitou, como se falhasse em acreditar na própria vontade. Amanda respondeu qualquer coisa, soando mais firme do que realmente era. Sentia seu próprio coração acelerar involuntariamente, e se odiava por isto. Se flagrou mordiscando levemente o lábio inferior, como se para comprovar que estava acordada.

Com um clique, o abajur da escrivaninha preencheu as paredes do quarto com uma cor  azul. Se erguei sob si mesma, segurando o telefone e ouvindo as palavras misturadas do outro lado da linha. O sono tinha ido embora. Não importava, já não ia mais dormir. Colocou suas pantufas em formato de elefante e se olhou no espelho com aqueles lindos olhos azuis, que já há muito tempo eram despidos de inocência. Desligou o telefone e se jogou sob sua cama, ao mesmo tempo em que tirava a camisola, deixando a mostra sua tatuagem no pescoço – uma flor, tão pervertida em sua inocência; um mapa silencioso que apenas alguns de seus amantes entenderam, enquanto outros não prestaram a mínima atenção.

De alguns meses para cá, Amanda se sentia cada vez mais vazia. Era como se houvesse perdido alguma coisa importante, sem saber bem o quê. Sentia como se gritasse para dentro, e só ouvisse em retribuição um eco desagradável, ecoando os tons de uma solidão desoladora. Uma mistura de angústia e ódio crescia, cada vez mais, de dentro dela, fazendo a sombra se espalhar por tudo. Até seu sorriso, antes bonito por ser gratuito, havia se transformado em uma obrigação mecânica, em uma máscara que vestia antes do café-da-manhã para socializar com o mundo. Tudo para evitar aquela pergunta incômoda: “Está tudo bem?”. Claro que não. Nada está bem.

Não era tudo culpa dele.

Era ela.

Ela se arrastava como uma morta-viva, respirando por aparelhos, levando os longos dias em uma mistura mortal de ansiolíticos, doses de cinismo e vodca com energético. Quando chovia, ela trancava sua porta, abria as janela e sentia o vento atingir seu rosto. Olhava, silenciosamente, para o horizonte. Para além do cemitério em sua janela e da correnteza de água fria que escorria entre calhas e muralhas de concreto. Um mundo vazio. Um mundo no qual ninguém sentiria sua falta. Nessas horas, um amargor estranho se espalhava pelo céu da sua boca, mas pular era coisa de idiotas castrados, mártires do nada.

Melhor se matar aos poucos.

E isso que ela havia feito nos últimos meses. Um suicídio de prazer intercalado por momentos de tédio, traduzidos sempre por uma terrível, inexplicável, vontade de chorar.

A porta do elevador se abriu, e uma brisa do lado de fora do prédio arrepiou os pelinhos de seu braço. Amanda parou por um instante. Na escuridão, o silêncio era cortado pelas batidas eletrônicas vindas de dentro de um carro que passava na rua de baixo, acelerando. “Os melhores aparelhos de som, as piores músicas”, suspirou, fechando o portão do prédio. Lembrou de seu avô. Ele reclamava do barulho na sacada, pitando seu cigarro de palha. “Essa molecada não sabe o que é bom”. Ela amava o velho.

Viu o carro branco parado na esquina, com as luzes apagadas e uma sombra refletida pela claridade da rua. Era ele, mas  também era o passado, fugaz, escondido, preparando para saltar sobre ela como um dragão salta sobre ouro. Muitas outras vezes sim. Não dessa vez. Eu espreitava, atrás do último poste, junto com as moscas mortas presas na lâmpada de neón.

Amanda caminhou lentamente e a porta do carro se abriu pelo lado de dentro; o convite para entrar em um universo familiar, inundado pela essência de nicotina. “Oi, Rafa”, disse, com a voz meio tímida.

Ele sorriu.