Não sei se é só comigo. Não sei se posso chamar de sincronismo junguiano, padrão no caos ou mera coincidência.
O que sei (e sinto) é que, volta e meia, durante esse ritual eterno e sem sentido de remexer gavetas velhas e desenterrar esqueletos de texto, me vejo de frente com um sentimento recorrente: é o passado gritando nos ouvidos do agora, reverberando como um sino dentro de uma imensa catedral vazia.
Dessa vez, foi uma entrevista. Assinei ela para a Folha de Londrina em 19 de fevereiro de 2011 quando, vestido com a ‘capa’ de repórter cultural conversei pela primeira vez com o cineasta Andrea Tonacci; reconhecidamente um dos maiores expoentes do cinema marginal brasileiro. Não lembro dessa entrevista, e nem dela ter me despertado qualquer sentimento particular – conhecia apenas superficialmente o trabalho de Tonacci na época e não me interessava muito. Esqueci tudo rapidamente. Olhando para trás, eu era meio ingênuo. Ou idiota. Ou as duas coisas.
A entrevista segue abaixo:
Qual é a maneira ideal de se aprender a fazer cinema?
Tonacci – Quanto ao aprender, só tentando, só fazendo. Para mim pensar cinematograficamente tem a ver com o aprendizado dos sentidos, a um estado de atenção mais consciente. O resto é braçal, suor e lágrimas, mecânico, digital, etc… Hoje, com 67 anos de idade, entendo a continuação do meu aprendizado cinematográfico como um procedimento de desapego a conceitos e imagens pré-existentes, persistentes, reincidentes. É como ter aprendido que é preciso fechar os olhos para ver o fluxo do próprio imaginário.
Qual a sua impressão sobre o crescimento do mercado do cinema brasileiro e a abertura de novos cursos sobre o assunto?
Tonacci – Só se for o crescimento da linguagem de TV nas salas de cinema. Aliás, salas de shopping – lojas. Nelas, o consumido é o espectador. Cabide temporário do que lhe derem para ver e vestir. O Brasil é essencialmente mercado e serviços, é o “projeto Brasil”. E mercado só cresce, senão não é mercado. Nisso, constato que a grande maioria dos cursos são para criar deslumbrados funcionais, futuros frustrados passionais, para operação da parafernália tecnológica mutante. Enquanto o aprendizado do pensar, olhar, ver, ouvir, sentir, imaginar, nada disso é essencial. Só conheço um único curso que inclui, por exemplo, filosofia na área do audiovisual.
Em sua opinião, ainda existe público e espaço para o cinema dito “marginal”, com propostas de linguagem diferenciadas?
Tonacci – Basta entrar na web para você ver a quantidade de filmes marginalizados e de “marginais” copiando, baixando… É a partir de agora que esse cinema livre vai aparecer como potência global de enfrentamento à indústria bélica do audiovisual indiferenciado. E sua exibição é independente de qualquer controle.
Em entrevista para a revista Contracampo, o senhor diz esperar que a garotada tenha raiva do que está acontecendo no mundo. Sobra conformismo para a juventude de hoje?
Tonacci – Não creio, é o terrorismo de estado que cresceu. Sua violência física, ética e moral redimensionou a condição do sentimento de liberdade e de revolta. Hoje briga-se pela visibilidade, uma briga de foice! Vale tudo para se dar bem, e dane-se o mundo. A autoimagem pública foi incorporada à identidade pessoal. Os filmes expressam a mutante condição humana diante do mundo que o próprio homem constrói. Mas aí estão revoltas populares e homens bomba para provar que a insatisfação está no auge. Veja o incorformismo que rola da web e explode socialmente, os filmes “clandestinos” são exibidos de mão em mão, as pessoas têm fome absoluta do diferenciado.
Como funciona seu processo criativo?
Tonacci – Ficar quieto, acalmar, deixar esvaziar tudo, voltar ao momento presente dos sentimentos e aguardar atento a formação de uma nova onda, ir ao seu encontro, entender sua força, velocidade, deixar-me levar e surfá-la, mas pode ser que não seja a boa, então nado de volta… mas é sempre o mesmo mar… que são meus sentimentos, questionamentos, emoções. Recentemente compreendi que Pereio no “Bang bang” (1970) é o mesmo personagem do Carapirú no “Serras da Desordem” (2006). O mesmo homem diante do mesmo mundo, o mesmo homem em dois momentos de sua vida. Depois é muita pesquisa, trabalho braçal, permeação na realidade cotidiana e questionamento constante.
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