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Hoje, depois que adormeci, Deus e o Diabo lutaram pela minha alma.

Não foi uma luta intergalática, daquelas cheias de efeitos especiais. Não foram raios e trovões contra escuridão e fogo. Nada disso.

Era um flat com cara de purgatório no meio da Av. Paulista, fim de tarde. Deus chegou do trabalho com uma pasta cheia de papéis para serem assinados, enquanto o Diabo dedilhava alguma coisa no violão, jogado no sofá da sala e ouvindo Led Zeppelin.

Sim, Deus era daquele jeito dos desenhos animados: um velho imponente, de barba branca e robe branco – estilo da moda pré-socrática, mas sem qualquer sinal de ironia. O Diabo era um moleque magrelo e meio amarelo, com uma capa vermelha e bigodinho de pirata. A divindade abriu a porta e foi direto para a geladeira, encostou a pasta no canto e começou a passar manteiga em um pão adormecido. “Um monte de reclamações e orações”, reclamou, com sua voz retumbante, enquanto o Diabo se levantava do sofá.

“Você e sua humanidade”, o Diabo comentou, com uma risadinha – evidentemente – diabólica. “O que a gente faz com esse cara?”, indagou o capeta, apontando para mim. Só então percebi que eu estava ali mesmo, no canto da janela, sendo muito mais que um observador passivo: eu era o assunto principal.

Deus me olhou, com um olhar meio grave e exalando uma sabedoria ‘gandalfiana’. “Eu até gosto dele, mas ele odeia mórmons. E os mórmons gostam de mim”, eu quis me defender, falar que não era bem assim, mas preferi ficar calado. Quem sou eu para discutir com O Cara? Ainda por cima, para ser sincero, tenho uma vontade sádica de soltar meus rotweillers em cima de qualquer um que toca minha campainha aos domingos de manhã, especialmente para falar sobre a Bíblia.

O Diabo colocou o braço no ombro do santíssimo barbudo, olhando para mim. “Este é caso perdido para você. Deixa eu levar pro lago de fogo, que ele vai se divertir mais: vou botar ele junto com Aristóteles, Nietzsche, esses caras”, enquanto Lúcifer falava, eu lembrava do Dante e do primeiro círculo do Inferno. Ficar no mesmo barco daqueles que duvidavam/desconheciam Deus não parecia má ideia. “Ou eu levo ele mais pro fundo, com umas mulheres bem safadas”, continuou. O Coisa Ruim, evidentemente, sabia do que eu gostava. Deus gargalhou. “Mas ele odeia calor. Ele sofre em uma tarde de verão em Ipanema. Imagina lá, na sua sauna fedorenta?”, o Divino, maldito em seu conhecimento, também tinha toda razão.

“Sabe o que é, Senhor da Luz? Você até fez algumas coisas boas. O mundo é bonito e agradável. E você fabricou as mulheres de uma costela”, o Diabo admitiu, com humildade. “Mas você também estragou várias coisas: espremeu o prazer de todo mundo, tirou a liberdade da galera. E até a Eva, tão gostosa no começo, acabou gerando umas gordas que andam de lambreta, usam batom laranja e batem em carros estacionados. O mundo ficou burro”, explicou, enquanto Deus acenava com a cabeça, concordando com a argumentação.  “Além do mais, o céu é cheio de músicas de grupos de jovens e tocadores de harpa”

Pronto,  Belzebu havia me convencido, definitivamente – cadê o contrato para assinar?

Eu estava feliz, decidido, já com as malas feitas para seguir em direção ao Hades. “Tome muito cuidado”, Deus ressaltou, em sua sabedoria imensa e universal. “O inferno também é uma eternidade de corintianos, chavistas e petistas”.

Plano sequência, entrei no elevador e acordei.

Até agora, não decidi se quero descer ou subir.

Melhor ficar por aqui.