“Fausto” (Drama. Rússia/Alemanha. 140 min).  Dirigido por Aleksandr Sokurov.  Na programação do Cine-Comtour/UEL até dia 21 de setembro.

 

“Eu estudei filosofia

A lei e a medicina

E, para o meu pesar, também teologia

Estudei todas com um zelo ardente

E ainda estou aqui, um tolo desgraçado

Não mais sábio do que era antes.” – Fausto, 31

 

Obcecado por encontrar respostas para suas perguntas, o pobre Dr. Heinrich Faust (Johannes Zeiler) é revelado pela primeira vez nas lentes do cineasta russo Alexandr Sokurov dissecando, dentro de seu laboratório sujo, as entranhas de mais um cadáver anônimo. “Onde está a alma?”, ele pergunta, mais uma vez, para os ouvidos vazios de seu simplório ajudante Wagner (Georg Friedrich). “Não consigo encontrar a alma. Acabou. É só uma fina pele”, conclui o cientista, decepcionado. Os órgãos do morto se espalham pelo chão, e só nos resta a podridão fétida da existência.

Em cinema, “adaptação” é sinônimo para reinvenção. Transpor um bom livro para as telas exige que os seus melhores fragmentos de textos sejam traduzidos em imagens, e que elas, por si mesmas, sustentem o espaço das reflexões racionais, e façam transbordar a subjetividade dos personagens principalmente através de gestos, silêncios e olhares que podem ser capturados pela câmera. “Mostre, não conte” é uma das máximas cinematográficas mais importantes que existem –  um diálogo que funciona nas páginas provavelmente não funciona em um monólogo de seis minutos na tela grande – e, justamente por falharem em compreender esse princípio, alguns clássicos da literatura foram transformados em filmes medíocres. Por outro lado, livros medíocres  já renderam um ótimo material cinematográfico. Cinema não é literatura, e vice-versa.

Obra-prima do escritor alemão Johann Wolfgang von Goethe, “Fausto” figura – ao lado de exemplos  como “Odisséia”, de Homero e “Ulysses”, de James Joyce – no panteão das obras ditas ‘inadaptáveis’. Mas talvez esta dificuldade é que tenha atraído desde o princípio o diretor russo, que escolheu adaptar esta obra de ficção para fechar sua série cinematográfica sobre a natureza humana (projeto pelo qual completou os filmes “Moloch”, de Hitler. “Taurus”, de Lenin e “O Sol”, do Imperador Hirohito). Antes de Sakurov, a única tentativa de adaptar o livro de Goethe foi em 1926, no magnífico “Fausto” do diretor alemão F.W. Murnau, mudo e em preto-e-branco.

A primeira impressão do trabalho de Sokurov é excepcional. Perdido dentro de uma atmosfera visual sufocante e miserável, o Dr. Fausto busca pelo sentido da vida em meio ao lixo humano, mendigos esfomeados e depravação moral causada pela guerra: Fausto não busca poder através do conhecimento, mas sim acesso à alguma coisa transcendente e eterna, um vislumbre de conhecimento negado para a mente que trabalha de maneira puramente racional.

Mas, depois deste impacto inicial, começamos a perceber que – além do cheio de carniça – alguma coisa estranha paira no ar. Fausto é preguiçoso e degenerado, retratado como apenas mais um produto da sociedade podre que o cerca. Para piorar, o sagaz demônio Mephistopholes virou Marcelo (Anton Adasinsky), um decrépito dono de uma casa de penhor que é ‘invocado’ para a existência sem um ritual místico. É nessa inversão de valores que a genialidade de Goethe é substituída pela pena incômoda das convicções do próprio Sokurov.

Dentro de uma jornada que se arrasta como um pesadelo – e que tem cenas impactantes dentro de tavernas, florestas e igrejas – é uma pena que este terrível espetáculo visual não faça jus à narrativa fraca que, mesmo dentro de um ambiente onírico (e auxiliada por boas perfomances de ambos os protagonistas) perde significado a cada passo. A maior falha do filme se resume no papel exercido pela bela Margareth (Isolda Dychauk): se, no livro, ela era o motivo de uma paixão desvairada que levou Fausto a firmar um contrato com forças sobrenaturais, na versão cinematográfica ela é apenas um objeto de desejo que, fazendo parte de um perverso amálgama de sexualidade e pedofilia, faz o cientista vender sua alma apenas em troca de prazer carnal.

Não nos identificamos com os dilemas de Fausto. Não empatizamos com o demônio Marcelo. Não sentimos nada além de sexualidade por parte de Margareth. Assim, a obra literária que inspirou mentes brilhantes como as de Nietzsche e de Schopenhauer ficou esvaziada em seu sentido filosófico. Para remendar isto, Sokurov tenta nutrir sua incapacidade narrativa acrescentando um caldeirão de simbologias e metáforas que invocam a obra “Assim Falava Zaratustra”: conferindo para o protagonista qualidades de Übermensch e apontando para o Eterno retorno nietzscheano. Não é o bastante.

Mesmo com algumas linhas interessantes e um aspecto visual fantástico, “Fausto” falha em transmitir o sentido essencial na obra de Goethe, e só pode ser indicado para o público que já é ‘iniciado’ na Filosofia e que conhece o texto original. Para o resto, é melhor gastar tempo na biblioteca do que no cinema.

Distorcendo Wittgenstein: o que não se pode filmar, deve-se evitar.