Para mim, era um momento quase religioso. O culto acontecia nas noites de sexta ou sábado, quando aquele garoto de óculos fundo de garrafa e cabelo cortado no estilo ‘papa capim’ se aventurava pela esburacada rua Cerro Corá, de mãos dadas com sua avó, pronto para entrar em um de seus lugares favoritos de todo o mundo.
Hoje, abandonada e parcialmente destruída – com pichações de símbolos anarquistas no mesmo lugar onde ficavam os pôsteres dos “Últimos Lançamentos” – a ‘World of Video’ já não faz jus ao seu nome. Antes, ela tinha cheiro de ar-condicionado e plástico novo, com prateleiras de ferro iluminadas por luzes brancas e um balcão cheio de balas ‘dentes de vampiro’, ou daquelas que coloriam a língua de roxo ou vermelho. Eu ficava passeando entre as fileiras, observando as capas das fitas VHS e pegando as que eu achava mais legais; este era o critério máximo na época, uma caixa ‘legal’ me bastava.
Depois de escolher minuciosamente, eu carregava uma montanha de fitas para um tio gordo e barbudo que ficava no caixa, sempre vestindo camiseta do Batman ou do Super-Homem: com um jeito de oráculo das minhas escolhas, ele olhava o que eu alugava e sempre soltava um palpite lacônico – para os filmes bons, balançava a cabeça e dizia “Esse é fera, meu!”, para os ruins, apenas resmungava um “hum”, limpando a garganta. Ele acertava na maioria das vezes.
E assim, sempre julgando o filme pela caixa, é que eu lembro de ter passado centenas de horas dos meus fins de semana em São Paulo comendo bolo de chocolate da padaria e assistindo clássicos como “Gremlins”, “Corra que A Polícia vem Aí” e “Bill e Ted: Uma Aventura Fantástica”. É, eu me esquecia de mim mesmo naquela pequena sala de TV do apartamento, que continua igual até os dias de hoje, vinte e poucos anos depois.
Eu já morava em Londrina na época, mas nunca morei perto do centro, e a tal da Delta Video era um sonho distante – ficava para além das montanhas do Jardim Quebéc. Depois que cresci um pouco, já pegava minha bicicleta ou pedia carona para meus pais para entrar naquele outro templo da mesma igreja; agora, os DVDs já tomavam o espaço das velhas fitas VHS e as plaquinhas de “Rebobine, por favor” já não faziam tanto sentido. Continuava sendo uma experiência meio mágica; nesta idade, eu já havia aprendido que as melhores coisas talvez estivessem escondidas nos cantos, longe da seção dos ‘Lançamentos’. Foi uma época fértil – “Indiana Jones”, “De Volta para o Futuro”, “Star Wars”, “Scarface”, a trilogia do “Godfather”, etc.
Admito que também alugava um ou outro filme de comédia romântica ou de terror sanguinolento para assistir com as menininhas do colégio (sim, garotas, ‘ver um filminho’ era minha armadilha preferida para ficar no escuro com vocês) mas já conseguia perceber que muitos desses filmes não serviam para mim. O que me interessava mesmo eram os salmos mais profundos, apócrifos meio esquecidos que a Delta escondia no seu acervo, raridades que pareciam dedicadas apenas aos fiéis mais fervorosos; lembro até hoje a impressão que me foi deixada pelos ‘Sete Samurais’ de Kurosawa. Porra. Como explicar aquilo?
Na semana passada, eu caminhei novamente pela calçada da extinta ‘World of Video’. Agora, aos olhos adultos daquele mesmo garoto, a locadora destruída parece um lugar pequeno, sem vida, sem luz. Igual ao Parthenon grego, ali só sobraram ruínas de um brilho do passado. Os antigos deuses já não cantam, amam e dançam por ali.
Talvez por isto que quando fiquei sabendo no final do ano passado que a Delta Video iria fechar suas portas, senti um negócio esquisito no peito. Pobres daqueles que não conseguem entender que uma video-locadora não é apenas um lugar para alugar filmes; uma locadora é o lugar onde as musas do Cinema se manifestam e te seguem com o canto dos olhos. Talvez, ali, naqueles corredores, você poderia se encontrar com algo que iria mudar sua vida definitivamente. Eu sei. Eu encontrei.
Aparentemente, a Delta perdeu a batalha contra uma imensidão de corredores claustrofóbicos, cheia de filminhos do pau-oco comprimidos em .avi, gravados em mídias de um real, vendidos desrespeitosamente dentro de sacolas de plástico e entregues por falsos profetas com mãos engorduradas por coxinhas amanhecidas. Três por cinco, eles dizem. Leva esse novo do ‘Transformer’, eles dizem.
Mas também existe outra coisa no ar. Uma religião que não precisa de templos ou dízimos. E a carta que postei em outro tópico (clique aqui para ler) pode dizer muito mais do que eu sobre o assunto.
Este texto, na verdade, é apenas minha singela homenagem aos pisos de granito de um espaço que fez tanto parte da minha vida. Deusa Delta, eu pensava que, talvez um dia, meu filme pudesse estar em suas prateleiras. Mas os tempos mudam. Impérios caem. Lojas fecham.
Apenas os sonhos permanecem.
Em nome do Scorsese,
Do Fellini,
e do Spielberg Santo,
Ação!
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