Naqueles olhos estava contida toda a condição humana.
A bala do rifle calibre .22 atravessou a pele e estilhaçou carne e ossos do imenso roedor, com um estrondo que se tornou ainda mais ensurdecedor por ser no começo da manhã, em um local mergulhado em uma paisagem bucólica. O cheiro da relva, ainda molhada pela umidade da noite anterior, foi substituído por um odor fresco de sangue, um gosto de metal que arranhava o fundo da garganta.
Vinte metros dali, o velho Mazzo apontava sua arma. Estava atento, pupilas dilatadas, com o cigarro pendurado no canto da boca como se fosse um palito de dentes. Relaxou os músculos da coluna, tensos pelo ricocheteio do disparo, e jogou a cabeça para o lado, estralando o pescoço. “Este nunca mais irá comer minhas melancias”, pensou, quase abrindo um sorriso de satisfação. Caminhou até o local onde a carcaça da capivara permanecia imóvel, deitada com um buraco atravessando a sua clavícula direita. Ajoelhou-se ao lado da antiga rival quase com reverência, respirando fundo o ar da manhã, “Este vai ser um bom dia”, pensou para si mesmo, antes de desembainhar a faca que carregava no coldre de couro gasto.
Mazzo limpou o suor da testa com a manga da camisa enquanto, com mãos magras e habilidosas, escalpelava o animal. Havia aprendido com seu pai, muitos anos atrás, que o segredo da carne macia estava em imediatamente arrancar a pele do bicho morto, sem deixar que as fibras ficassem duras por falta de oxigênio. Nunca descobriu se aquilo era verdade, realizava o ritual por força do hábito – sempre com o mesmo facão, que os anos de uso roubaram o fio da lâmina.
As nuvens cortavam o céu azul e plantações se estendiam indefinidamente. Naquele momento o vento suspirava, fazendo com que as espigas dos trigos dançassem uma melodia silenciosa. Mazzo carregava um saco de lixo preto e a espingarda sob os ombros, caminhando em direção à pequena casa, contornada pela cerca de madeira descascada, com tinta velha e gasta. Os porcos se agitaram, grunhindo com a chegada do dono. O velho passou pelo chiqueiro improvisado e largou, com certa dificuldade, o saco de lixo em cima da pia, deixando a espingarda encostada na porta de madeira que abria para a cozinha. Fora de perigo a leitoa se calou, chafurdando na lama.
Mazzo separou algumas ervas que cresciam na terra organizada em potes de margarina. Pegou um facão limpo e uma tábua, preparando os ingredientes. “Ainda tenho tempo”, pensou. Enrolou e acendeu um cigarro de palha, sentado em uma cadeira de praia que nunca havia visto o mar; o reconfortante sabor de nicotina arranhou sua garganta. Talvez chovesse mais tarde. Não importava. Esperou. Fechou os olhos. Esperou a fome. Esperou que as folhas da amoreira de seu quintal caíssem. Esperou por um sentimento que nunca saberia descrever.
Acordou assustado de um sono sem sonhos, as cinzas do cigarro espalhadas pelo chão e em parte de sua camisa. O sol do meio do dia aquecia as telhas de barro, e Mazzo sentiu um suor frio descer pela testa. Apoiando as mãos no apoio de metal de cadeira, levantou-se com um gemido. “Merda”, murmurou, descontente consigo mesmo. Não existe nada mais terrível do que ser derrotado pelo próprio corpo. Abriu a geladeira e alcançou uma cerveja morna, ainda sonolento, e caminhou até o sofá da sala. Começou a beber, a TV desligada. Um trator passava longe dali, mas hoje não era dia de trabalho. Deu mais um gole na cerveja, sabendo que inevitavelmente seus pensamentos iriam levá-lo para o rosto de Izabel.
Tentou lembrar de outra coisa; tentou passar os olhos na capa da revista de três meses atrás, pensou no chuveiro que tinha que consertar, respirou o ar puro de um domingo de manhã. Pensava em Izabel. Podia jurar que a casa ainda exalava o perfume doce daquela presença desgraçada. Já faziam três anos. “Puta ingrata”, rangia entre os dentes e com um peso no peito – já não se importava com sua ex-mulher ou com os filhos que nunca visitavam, para o inferno com eles; Izabel era a ferida no céu da boca, um fantasma que se transformava lentamente em uma bola de pus, ódio e sangue.
O ardor do uísque barato desceu em um gole só, servindo como imenso consolo. “Afogar as mágoas”, murmurou. Caminhou sem rumo pelo corredor da velha e pequena casa, ida e volta, olhou para os móveis e abriu as gavetas com a mão direita, enquanto a outra segurava a garrafa pela metade. Havia uma foto – uma única foto, perdida entre papéis amarelados e moedas de cinco centavos. Ele colocou os olhos sob Izabel: cabelos loiros nos ombros, sorrindo na mesa de jantar e abraçada por alguém que sorria. Era Mazzo e não era Mazzo. Durante algum tempo, aquela foto talvez significasse alguma coisa. Agora, nada. Ele não lembrava nem do seu sorriso, nem do barulho que ela fazia ao gozar e nem do choro desesperado da última paixão de sua vida. Deitou na cama e fechou os olhos, dando um longo gole no uísque sem gelo e sem conforto, deixando a foto escorregar por entre os dedos.
“Puta ingrata”.
Nuvens negras cobriam o céu da noite silenciosa e as estrelas se escondiam, anunciando a chegada de uma tempestade. O facão cortou a carne morna, e o que antes era uma capivara se transformava, golpe a golpe, em um monte de tripas. A navalha desceu mais uma vez, com força redobrada, atingindo um osso da clavícula. A bala ainda estava alojada por ali e o velho buscava, com seus dedos magros, o contato com o metal. O mal cheiro era disfarçado pela fumaça de mais um cigarro de palha e pela panela no fogo, que borbulhava com água quente misturada com tomilho e hortelã. Mazzo retirou cuidadosamente um grande filé da parte posterior do bicho, o resto embrulhado em plástico para guardar no freezer.
Um prato, um garfo e um copo de cachaça. Serviu a si mesmo e mastigou lentamente o resto do roedor, experimentando um sabor que lembrava o de porco cozido. Enxaguou a refeição com cachaça, e mastigou novamente. Não tinha muito sabor. Sentiu um formigamento no ombro e engoliu em seco, ouvindo o barulho do próprio estômago. Tinha o olhar fixo na parede vazia, na cor palha repleta de rachaduras causadas pela infiltração; qualquer casa – assim como qualquer homem – possui cicatrizes invisíveis.
Lá fora, a chuva fina começava a cair como um preâmbulo do inevitável temporal. Um estalido seco, como o de um trovão, ressoou pela fazenda. Em seguida, grunhidos estridentes dos porcos.
Ao redor, apenas o silêncio.
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